Foi só dessa vez que reparei como a gente passa de pessoa a sigla muito rápido quando tem um problema de saúde. Num instante eu era a Gica, três respostas depois eu era G3P1. Tudo bem: estamos na sala do pronto-atendimento, o que quer dizer que não há tempo para “puxa vida, e como foi pra você quando isso aconteceu?“. Não, não: há uma fila imensa ali de gente precisando do pronto e do atendimento. Querida, aqui você é a G3P1, gê-de-gato-três, pê-de-pato-um. Três vezes grávida, um parto. E eu nunca perdi um bebê. Na verdade, eles é que se perderam.
Na primeira vez, eu era só a Gica, grávida zero vezes, zero partos. Mas uma Gica sob o efeito de um chamado da natureza e da imensa alegria que é descobrir que está dormindo e acordando e dividindo boletos e histórias de vida com um cara sensacional. Uma Gica que estava na maior “ei, a gente é tão legal! vamos nos multiplicar!“. Uma Gica que um dia estava com dores de cabeça tão fortes e cólicas violentas a ponto de ir até o pronto atendimento. O médico era um daqueles que ficou cansado de viver e não tinha mais energia pra fazer outra coisa uma vez que já havia estudado tanto pra ser ginecologista e agora estava lá, aos quarenta e poucos, cabeça rala, figura roliça que deu a notícia que eu mais queria ouvir em 2009, só que de um jeito torto. “Você talvez esteja grávida.” Ele disse G R Á V I D A. Dane-se o que veio antes. Dane-se a expressão reticente dele. Ele estava cansado. Ele estava virado. Ele estava com problemas em casa. Ele estava vindo para o trabalho e bateram no carro dele. Ele estava com gases. “Volta daqui 3 dias pra refazer esse exame?” quando ele disse isso eu não entendi direito porque, oras, não existe meio grávida. Ou você está grávida, ou você não está, certo? Errado.
Um mês. Fui meio grávida por um mês. A cada 3 dias, um BHCG Quantitativo para ver números que deveriam crescer em progressão geométrica crescendo em progressão aritmética. A cada 3 dias um novo médico do pronto atendimento me pedindo pra voltar em 3 dias. E cólica. E eu falando para aquele bebê ser forte. E meu marido meio maluco. E eu mais maluca ainda. E um sangramento. E eu saindo correndo do trabalho para o hospital. E aquele BHCG crescendo de grão em grão. E eu chorando no colo da minha mãe no Natal. E ela me dizendo que eu fazia tudo ao mesmo tempo. E eu meio zumbi e meio grávida e totalmente farta da ansiedade que envolve tudo isso. Foi no dia 31 de dezembro de 2009 que ele apareceu pela primeira vez na minha tuba uterina (o jeito como a trompa se chama agora), mesmo dia em que o BHCG zerou. Nesse dia eu descobri que o nome disso era gravidez ectópica, o que em grego, latim ou qualquer outro idioma que ninguém mais fala quer dizer “em qualquer lugar que não seja o útero“. Placar G1P0.
Meu médico titular voltou de férias e me pediu pra não fazer muitos esforços pelos próximos 3 meses, para deixar o corpo “absorver” o que deveria ter sido meu primeiro bebê. A vida ficou bem estranha, acho que eu não precisava de uma recomendação de não fazer esforço porque força era uma coisa meio inexistente ali. Havia luto e dor. Ao fim dos três meses, um exame dolorido e de nome assombroso – histerossalpingografia, acabaram com aquele ciclo. Estava biologicamente bem, com duas trompas íntegras e um “pode tentar de novo, viu?” do médico. Marido e eu concordamos que não pensaríamos mais em engravidar pelos próximos, sei lá, dois anos. E um mês depois eu estava grávida.
Como os sintomas foram basicamente os mesmos da gravidez anterior: muita dor de cabeça e cólica, fiquei com muito, muito medo. Lembrei de todos os exames, as frustrações, a ansiedade e ao pensar em passar por tudo isso outra vez, uma lágrima caía mais pesada que a outra. BHCG baixinho, nada no útero. Médico me mandou voltar em 4 semanas para fazer um novo ultrassom. Quando vimos o embrião no meio do útero e ouvimos o coração pulsando, o gosto ruim da gravidez ectópica passou. Uma gravidez linda, um parto tranquilo e uma bebê perfeitamente saudável: assim virei G2P1.
Quase cinco anos depois do nascimento da minha filha, enjôo. Oi? Sensibilidade no peito. Ué. Sangramento. Estranho. Marido e eu combinamos de não trocar mais presentes no Natal porque conseguimos transformar em realidade o cliché “viver com você já é meu maior presente“. Mas no fim das contas ele me deu um teste de gravidez de farmácia e eu devolvi dois palitinhos cor de rosa. Eu ria até doerem as bochechas e ele fazia aquela cara de japonês surpreso-e-feliz-e-ai-meu-deus que eu amo. Três segundos depois, ele já estava traçando um plano de fuga para que eu passasse os primeiros três meses da gravidez fora do foco de microcefalia que havia se implantado no Nordeste – onde vivemos agora. Enquanto isso, eu lembrava do sangramento insistente e das cólicas. Nesse instante viajei para 2009 e revisitei todas aquelas sensações: o medo, a incerteza, a ansiedade, a frustração. Voltei para o presente determinada a viver um dia de cada vez.
“A gente sabe que eu engravidei. Se vou continuar grávida ou não, é outra história. Se der certo, lindo. Se não ser, lindo. Está tuuuuudo bem“.
Foi o que disse para o marido e para pouquíssimas pessoas ao nosso redor. Conseguimos fazer um ultrassom dia 31 de dezembro, onde não se viu nada ou porque era muito cedo, ou porque já era tarde. Lembrei do primeiro ultrassom da minha filha, onde também não vimos nada porque era cedo demais. O primeiro BHCG veio na casa dos mil e trezentos e o sorriso aumentou. Três dias depois liguei para o marido pra falar do outro resultado: oitocentos. Aqui a dor da perda apareceu, mas numa intensidade muito menor do que na primeira vez. Talvez por já termos uma filha, talvez por termos mantido uma certa distância – ao invés de chamar o provável bebê de bebê, eu o chamava de possibilidade. No dia seguinte, uma preocupação tomou conta da minha cabeça: sangramentos, cólica no lado direito, BHCG decrescente… Poderia ser outra ectópica.
Foram vários dias e 3 ultrassonografias até encontrarmos uma massa de quase 20cm3 na minha tuba direita um dia antes de eu voar para São Paulo onde tinha entrevista do visto americano agendada, reuniões de trabalho e toda uma vida pra acontecer. Minha médica me PROIBIU – assim mesmo, em letras maiúsculas – de viajar porque havia o risco real de rompimento. Gravidez ectópica é a principal causa de morte de gestantes no primeiro trimestre. Pois bem: o luto pelo meu não-bebê se transformou em cuidado para que eu não fosse motivo de luto pra ninguém. Fui fazer mais um ultrassom para ver se a massa estava crescendo e, enquanto esperava a minha vez de entrar na salinha, uma outra mulher com um avental rosa tão patético quanto o meu entrou na sala chorando muito. A mulher estava visivelmente grávida e uma funcionária da clínica entregou algum comprimido a ela, que entrou no vestiário provavelmente querendo morrer. Fui atrás.
_Oi. Tudo bem?
_Tudo. Não.
_O que houve?
_Eu. É que. Acabei de descobrir que meu bebê não está mais vivo.
_Posso te dar um abraço?
Não sabia seu nome, nem nada a seu respeito. Só sabia que ela estava passando por uma das dores mais injustas que alguém pode sentir. Ela chorava muito, eu chorava pouco e nosso choro foi se equilibrando naquele abraço. “Isso pelo que você tá passando agora é muito, muito ruim. A pior coisa. E vai demorar, mas vai passar. Eu prometo.” E fui lá ficar naquela posição estranha de ultrassonografia transvaginal pensando que gravidez ectópica é horrível, mas não ouvir o batimento cardíaco de um feto de 5 meses é mais. Ao mesmo tempo, me senti estranhamente grata por estar passando por aquilo e poder estar lá para aquela mulher naquele momento.
Fui ver meu ginecologista de Fortaleza em seguida. Fiquei aliviada ao entrar no consultório porque todo o acompanhamento que estava recebendo até então vinha da minha médica de São Paulo, com quem eu tenho uma longa relação de confiança, mas que estava a 3 mil quilômetros de distância. Foi tranquilizador saber que eu poderia contar com um médico extremamente competente e muito bem recomendado para me ajudar no meu status G3P1. Ele recomendou que eu fizesse um procedimento com metotrexato, um medicamento usado na quimioterapia. Explicou que isso é feito em alguns casos de gravidez ectópica desde a década de 80 e que eu me enquadrava em todos os requisitos para receber o MTX. Agendamos o procedimento para o dia seguinte na oncologia do hospital.
Muita tosse, febre e dor no pulmão no dia seguinte, aquele. Lá ia eu para o pronto atendimento, me certificar de que não estava com pneumonia antes de receber o MTX que, como outros medicamentos usados no tratamento de câncer, é também um imunossupressor. Tudo seguia bem até o enfermeiro da radiologia perguntar se eu estava grávida. Como a gente responde a essa pergunta nessas condições? “Sim, mas não do jeito que você está pensando” foi a resposta que deixou o rapaz perplexo.
_É uma gravidez fora do útero.
_Então eu não posso fazer esse raio-x na senhora.
_Pode, querido. Não tem bebê aqui. É só uma coisa. Não tem nem batimento cardíaco fetal.
_É que. É. Eu. Eu vou chamar uma médica. Só um momento.
Entra a médica toda bem-intencionada.
_Então você está grávida.
_Doutora, é uma gravidez ectópica que já está involuindo. Eu vim fazer o metotrexato hoje justamente pra ajudar o corpo a absorver essa massa.
_E você tem certeza disso?
_Tá aqui o pedido do meu obstetra para a oncologia.
_Ah, olha aqui. Tá vendo? O próprio médico dela escreveu. Então tira um xerox disso e anexa no protocolo dela. Senhora, desculpa fazer todas essas perguntas. É que são muito poucos os pacientes tão esclarecidos quanto a senhora. Você não faz idéia da quantidade de grávidas que vêm aqui fazer raio-x e que a gente manda pra casa.
Enquanto o moço fotografava meu pulmão, ficava pensando em como deve ser difícil ser médico quando o paciente não faz a mínima pelota do próprio corpo. É engraçado imaginar que a gente entende tanto sobre música, futebol, cinema, receitas de pão, seriados de tv, estratégias de comunicação, astrologia, bordado, a vida dos tubarões e sabe tão pouco sobre a gente mesmo. Por sorte, cultivo um interesse acima da média sobre saúde e anatomia – o que facilita bastante minha compreensão sobre as coisas que acontecem aqui dentro. No caso, uma bronquite. MTX reagendado para dali a dois dias.
A enfermeira da oncologia era muito simpática. Falou que o MTX poderia causar náusea, cansaço, alguma queda de cabelo e outras coisas que não gravei na memória. Fomos dos cuidados ao “você também tem uma filha?” rapidamente e só saímos do consultório duas horas depois. Foi como o reencontro com aquela amiga de infância que você não vê há vinte anos, com a diferença de nunca termos nos visto antes. Aquela conversa toda que passou por milhares de tópicos, mas não esbarrou em momento algum em “gravidez ectópica”, fez um bem enorme pra gente. Dava pra sentir que era uma terapia mútua. Saí dali e tomei duas injeções bem ardidas com o tal MTX. Depois de um tempo em observação, nenhum efeito colateral.
No dia seguinte, todas as promessas se cumpriam: fadiga, enjôo, boca cheia de saliva, mais a tosse ininterrupta da bronquite. Foi quando pensei que os pacientes da oncologia são mais fortes do que a gente imagina. Lidar com os sintomas da doença e os efeitos colaterais da quimioterapia e ainda voltar para uma sessão seguinte não é pra qualquer um (e a dose que eu recebi foi uma fração do que os pacientes recebem). Também foi nesse dia que prometi pra mim jamais fumar outro cigarro na vida. Eu já não fumava regularmente há seis anos, mas andava encontrando licenças poéticas para justificar um ou outro maço ali. “Eu não fumo, não. É só quando estou estressada / na balada / sozinha em alguma cidade / finalizando um filme / deprimida / porque sim”. Adoro fumar, mas adoro mais meus pulmões. Eles fazem muita falta quando não funcionam direito.
Passei dias na cama. Dias em que a cabeça flutuava entre milhares de cenários, perguntas e reflexões. Dias em que pessoas de perto e de longe foram as melhores. Gente preocupada em manter meu coração quentinho que perguntava meu status a todo momento, me dava beijo e mandava palavras doces. Um marido sendo ainda mais sensacional que o de costume cuidando de mim. Uma filha sendo parceira ainda que sua festa de 5 anos tivesse sido cancelada por causa da dor de barriga da mamãe. O BHCG feito quatro dias depois do MTX estava em 160. Essa história estava quaaaaase no fim. Alguém pediu mais adrenalina?
Estava me sentindo bem, cuidando da filhota que havia acabado de adquirir uma gastroenterite viral – por que não? – aquela virose animadíssima com vômito, diarréia, febre e zero apetite. Até que comecei a sentir uma colicazinha de nada do lado direito. E ela foi aumentando. E de repente eu não conseguia mais ficar de pé. Mandei uma mensagem para o médico que me mandou ir para o hospital, onde ele me encontraria. Senti que ia vomitar ou evacuar ou os dois e consegui ligar para o meu marido. Pedi pra ele chamar alguém e não consegui mais falar. Foi ficando tudo preto e eu tive muito medo da minha tuba ter rompido. Pensava que ia morrer no chão do banheiro com minha filha de cinco anos no quarto ao lado. Estava branca. Consegui jogar uma água no rosto e mandei uma mensagem pedindo ajuda no grupo de whatsapp do condomínio. Fui me arrastando até a cama. A dor era muito, muito forte. Vizinhos começavam a chegar.
Eles ligavam para o 190 e me perguntavam o que eu tinha. Eu dizia HEMORRAGIA, eles perguntavam se eu estava grávida e eu dizia SIM e conseguia ouvir a voz do outro lado da linha dizendo que provavelmente eu estava tendo só um aborto e que era pra ligar pra outro número. Eu sentia dor demais pra explicar. AVISA QUE A MINHA TROMPA ROMPEU, POR FAVOR. E ninguém entendia nada. E um vizinho era médico e ligou pra Unimed e outra vizinha me ajudou a vestir uma calcinha e minha filha começou a chorar e a dor era tanta que eu já estava alheia ao que acontecia e as coisas começaram a borrar e não tinha ambulância e eu não queria morrer. Meu marido chegou e quando isso aconteceu eu fiquei tão feliz. A presença dele ali me trouxe de volta para o que precisava ser feito: ir para o hospital naquele instante.
Meu médico já estava lá quando chegamos. Do mesmo jeito que fiquei feliz ao ver meu marido, fiquei tranquila ao ver meu médico. Naquele momento não tinha pra ninguém: House, Grey ou qualquer outro médico da televisão. O meu médico foi o melhor do mundo da ficção e da não-ficção também. E ele não era nem plantonista daquele hospital. Entrou comigo num consultório vazio, me examinou, chamou o ginecologista plantonista, conversou com ele sobre a analgesia e os exames que eu deveria fazer, me acompanhou no ultrassom – onde vimos que a tuba uterina estava íntegra – e só me deixou quando fui para a observação. A dor foi diminuindo e até agora não sabemos o que houve, só temos certeza de que nada se rompeu. Passei a noite no hospital, onde também não era Gica: agora era “a ectópica” e “o leito oito“. Marido foi pra casa dormir com nossa filha e eu fiquei ali olhando para as paredes, ouvindo trechos de conversas dos leitos vizinhos, tentando descobrir o que havia acontecido ao senhor do leito nove que era muito velhinho e não parava de balbuciar de um jeito tenebroso.
Três enfermeiros e um médico vieram me perguntar o que havia acontecido comigo em momentos diferente e pensei que esse hospital deveria investir em algum sistema ou jeito de concentrar melhor as informações dos pacientes para que eles não tenham que explicar tudo o tempo todo. Um dos médicos plantonistas quis me operar ao saber que eu estava lá. Falava com cacoete de professor, daquele jeito que explica as coisas e, na última palavra da frase, fala só a última sí… laba, que é pra você terminar a palavra com ele. Disse que se as coisas continuassem como estavam, tudo bem, mas que teria que operar caso a dor ficasse ma…ior. E que lá não tinha vídeo-laparoscopia, então teria que abrir do mesmo jeito que abre quando faz a ce…sárea. “Moço, tá tudo certo. Meu médico está me acompanhando. Ele só me deixou aqui pra eu ficar sob os cuidados de vocês. Não precisa me operar, não. E, se precisar, a gente liga e ele vem, tá?”
Dormia e acordava do mesmo jeito que se dorme e acorda quando você está num lugar barulhento, com pessoas doentes ao seu redor e enfermeiros que não entram num consenso sobre manter as luzes acesas ou apagadas. Por volta das oito da manhã, meu médico rock star passou pra ver como eu estava. Me deu alta e pediu que eu o mantivesse atualizado. Pouco tempo depois, marido chegou com nossa filha e fui envolvida por um abraço poderoso. Foi muito bom chegar em casa, tomar um banho demorado – desculpa, planeta Terra, eu compenso isso depois – e voltar para a minha cama. Até a virose da filhota passou.
Agora é observar e esperar acabar. Com sorte, sem nenhuma outra surpresa. Quanto ao meu placar, fico na esperança de que o G mantenha sua vantagem de no máximo 2 sobre P e de que P logo seja maior que 1.